COMO A PARTE BOA DA AMAMENTAÇÃO É VISTA COMO RUIM (PARTE 1)
Muitos médicos, assim como ativistas anti-amamentação, conseguem virar a lógica de cabeça para baixo e empurrar goela abaixo a noção de que o que é bom na amamentação é, na verdade, ruim (para a mãe ou para o bebê). Seguem dois exemplos.
1. O leite materno contém anticorpos que protegem o bebê contra infecções
Ao contrário do que muitas pessoas, incluindo médicos, pensam, o leite materno tem muitos e diversos fatores imunológicos, não apenas anticorpos, que ajudam a proteger o bebê contra infecções. O fato de que mesmo bebês amamentados exclusivamente às vezes contraem infecções é considerado uma “prova” de que o leite materno não oferece proteção nas “sociedades de primeiro mundo”. Isso, é claro, não é prova de nada, já que nenhuma medida de proteção é perfeita. Não se deve esquecer que, enquanto os bebês amamentados são ativamente protegidos, os bebês alimentados com fórmula nas sociedades ricas são protegidos porque estão “enclausurados”.
No entanto, os “empurradores de fórmula” esquecem que existe nosso próprio “terceiro mundo”, mesmo dentro dos países mais ricos do mundo; nas favelas das cidades, em algumas áreas do interior e nas primeiras comunidades indígenas no Canadá, EUA, Austrália e América do Sul.
O leite materno contém muitos fatores imunológicos, dezenas na verdade, trabalhando em conjunto para proteger o bebê contra infecções. Como mencionado acima, os anticorpos representam apenas um desses fatores.
Uma maneira importante, mas não a única, do leite materno proteger ativamente o bebê é formando uma barreira de fatores imunológicos no revestimento do trato digestivo e respiratório que bloqueia a entrada de bactérias, vírus e fungos no corpo dele (qualquer coisa dentro do aparelho digestivo e respiratório é considerado fora do corpo). A grande maioria dos anticorpos no leite é chamada de IgAs (IgA “secretora”, composta por duas moléculas do anticorpo IgA, com uma cadeia secretora adicionada que permite que a molécula entre no leite e uma cadeia J que protege a molécula de digestão por enzimas gástricas e intestinais). As moléculas IgAs constituem um componente dessa barreira protetora, mas a barreira também é composta por lactoferrina, lisozima, mucinas e outras; entretanto, os anticorpos IgAs não são absorvidos pela corrente sanguínea do bebê. Algumas pessoas que não sabem do que estão falando dizem (e até escrevem em livros) que os anticorpos do leite materno conseguem proteger o bebê somente contra infecções do trato gastrintestinal (gastroenterite que causa vômito e diarreia) porque os anticorpos não entram na corrente sanguínea. Obviamente eles não sabem como essa barreira funciona. E claro, é melhor evitar que germes entrem no corpo do bebê, inicialmente, do que combatê-los depois de invadirem o bebê.
As mães com doenças autoimunes costumam ser orientadas que não podem amamentar
Muitas mães que têm doenças causadas por anticorpos contra seus próprios tecidos (doença de Graves, tireoidite de Hashimoto, lúpus eritematoso, púrpura trombocitopênica idiopática, anemia hemolítica autoimune, artrite reumatoide e outros) são orientadas de que não devem amamentar porque os anticorpos que causam sua doença irão passar para o leite e causar a mesma coisa no bebê.
Isto não é verdade. Em primeiro lugar, o IgAs, que é o principal anticorpo do leite materno, constituindo pelo menos 95% de todos os anticorpos do leite, não é absorvido pelo trato intestinal do bebê, portanto, não pode entrar no corpo dele e causar doenças. Em segundo lugar, os anticorpos que causam doenças como a artrite reumatoide não são do tipo IgA e, em qualquer caso, não passariam para o leite em quantidades significativas. Mesmo se o fizessem, seriam destruídos no estômago do bebê (a IgAs não é destruída porque tem aquela cadeia J que a protege das enzimas digestivas). Mesmo que os anticorpos que causam doenças autoimunes de alguma forma passassem pelas enzimas digestivas, eles também não seriam absorvidos pelo corpo do bebê.
Portanto, se a mãe tem uma condição em que os anticorpos em seu corpo atacam seus próprios tecidos, a mãe pode e deve amamentar seu bebê confiante que está fazendo o melhor para ele e não deve se preocupar com os anticorpos passando para o leite e causando problemas para o bebê.
Mas o bebê pode nascer com o mesmo problema!
Verdade, em algumas condições como as mencionadas acima, o bebê pode nascer com o mesmo problema da mãe. Por exemplo, um bebê cuja mãe tem púrpura trombocitopenica idiopática (em que a mãe tem plaquetas baixas causadas por anticorpos contra elas, fazendo com que sejam destruídas) muitas vezes também nascerá com plaquetas baixas, uma vez que os anticorpos da mãe passaram pela placenta para o bebê durante a gravidez, mas os anticorpos não vêm do leite materno. Isso é óbvio porque a contagem de plaquetas é fácil de dosar e é uma parte rotineira do hemograma junto com a hemoglobina, hematócrito e contagens de leucócitos. A baixa contagem de plaquetas do bebê pode estar presente por algumas semanas após o nascimento, mas raramente é tão baixa a ponto de causar um risco real de sangramento. Com o tempo, geralmente seis ou oito semanas após o nascimento do bebê, as plaquetas aumentam, pois os anticorpos estão desaparecendo de seu sangue.
Outra situação fácil de mensurar ocorre quando a mãe tem anemia hemolítica autoimune, uma condição causada por anticorpos contra seus glóbulos vermelhos, resultando em anemia. O bebê pode nascer com a contagem de glóbulos vermelhos baixa por causa dos anticorpos que foram para seu corpo durante a gravidez através da placenta. Tanto a púrpura trombocitopênica idiopática quanto a anemia hemolítica autoimune quase sempre melhoram sem tratamento específico, a menos que as plaquetas do bebê, em um caso, ou os glóbulos vermelhos, no outro, estejam muito baixas e necessitem de transfusão, raramente necessária.
Outro exemplo é a mãe que tem doença de Graves, que causa hipertireoidismo (tireoide hiperativa). Os anticorpos da mãe atravessam a placenta, como acontece com as outras condições discutidas acima, e o bebê nasce com sinais de hipertireoidismo: frequência cardíaca acelerada (acima de 160/minuto), irritabilidade, pressão alta e até mesmo insuficiência cardíaca congestiva se grave. Também pode ocorrer baixo ganho de peso. O tratamento dos sintomas do bebê é possível com medicamentos que bloqueiam o efeito da tireoide hiperativa. Mas, novamente, não há razão para restringir a amamentação.
Em alguns raros casos, entretanto, o bebê continua a ter os problemas acima por muito mais tempo do que as habituais 6 a 8 semanas. Parece muito improvável que isso se deva à presença contínua de anticorpos da gravidez, que habitualmente desaparecem nas primeiras semanas e, como mencionado acima, é impossível explicar por causa dos anticorpos passados pelo leite. É mais provável que existam citocinas, pequenas proteínas, que afetam a capacidade de resposta imunológica do bebê.
Um efeito nas células sanguíneas ou plaquetas, bem como em outras síndromes, por mais tempo, digamos, de dois a três meses, é incomum e até mesmo raro e não há razão para dizer à mãe para não amamentar desde o nascimento, como costuma ser feito. Se acontecer prolongamento das plaquetas baixas, hemoglobina baixa ou outra síndrome, mais de 3 ou 4 meses, apesar do tratamento como transfusão ou corticosteroides orais no bebê, a interrupção da amamentação pode ser considerada. Deve ser apontado que plaquetas baixas, a menos que muito baixas, não estão associadas a um alto risco de sangramento.
2. O leite materno varia de mulher para mulher, desde o início da mamada até o fim da mamada, de manhã à noite, de acordo com o que a mãe come, desde o início da lactação (colostro) até o final dela. Em outras palavras, o leite muda de acordo com as necessidades da criança. Por causa disso, algumas pessoas começam a ter algumas ideias esquisitas.
Essa variação na composição do leite materno não é ruim: é boa. Significa que o leite materno muda em resposta às necessidades individuais do bebê em crescimento. Mas como transformamos isso em algo ruim?
O leite de uma mãe que amamenta um bebê de certa idade não é apropriado para um bebê de outra idade
Quão absurdo é dizer isso?
Recebo e-mails, não raramente, perguntando, por exemplo, se uma mãe pode oferecer o leite de sua irmã que está amamentando uma criança de dez meses para o seu próprio bebê, que tem 3 meses, e não está recebendo leite suficiente de seu seio. “O leite da minha irmã é bom para meu bebê de 3 meses ou devo suplementar com fórmula?” Essas perguntas vêm não apenas das mães mas também das consultoras de amamentação. Muitos médicos, com raras exceções, não se preocupam nem em pesquisar. Eles apenas falam para a mãe que não pode, sem pensar a respeito. Existem maneiras, aliás, de aumentar a produção de leite materno da mãe do filho de três meses.
A pergunta evidencia muito sobre a eficácia do marketing de fabricantes de fórmulas. No entanto, vamos pensar sobre isso um minuto. Uma fórmula de determinada marca não muda, presumindo que foi preparada de acordo com as instruções. Como isso poderia ser melhor? Se um bebê requer leite materno diferente para uma idade diferente, como a fórmula, que não muda em nada, é mais apropriada para bebês de todas as idades? A fórmula “recomendada” para uma criança de 2 dias, ou de 2 semanas ou de 2 meses é a mesma, idêntica. A fórmula, se olharmos bioquimicamente, não é nada como o leite materno, independente se o leite materno é para uma criança de 2 dias, de 2 semanas, de 2 meses ou de 2 anos. As “fórmulas de seguimento” são produtos quase que completamente desnecessários, exceto para o lucro das empresas de fórmulas, e não resolvem esse problema, pois são as mesmas para um bebê de 6 meses, 12 meses ou 36 meses.
Compartilhamento do leite materno
Até mesmo pediatras fazem afirmações absurdas sobre a necessidade do leite materno ser “adequado para a idade do bebê” (o que não é surpreendente, pois a maioria não aprendeu nada de útil sobre amamentação em sua formação). Aqui está parte de uma declaração da Associação Profissional de Pediatras com relação à distribuição do leite materno (conforme relatado no Daily Mail de 17 de outubro de 2012): “Ela (a Associação Profissional de Pediatras da Alemanha) também alertou que as necessidades nutricionais de um recém-nascido diferiam das as de um bebê com semanas ou meses de idade. O leite de uma mulher com um filho mais velho não contém a composição nutricional certa para um recém-nascido, acrescentou… ”Fico perplexo e incapaz de comentar o absurdo dessa declaração. Então, a fórmula, que não muda, é melhor para o bebê do que o leite materno, que muda com o tempo. A mente engana.
Banco de leite materno
Muitos bancos de leite não aceitam leite de mães que amamentam crianças maiores de 6 meses, aparentemente pelos mesmos motivos acima. Este é um desperdício terrível de potenciais doações. Frequentemente é a mãe que consegue extrair o leite para doação com mais facilidade.
Se não houver leite materno disponível no banco de leite, o bebê que precisar de suplementação receberá fórmula, e isso é verdade quer o bebê tenha uma semana de vida, 6 meses ou 8 meses. A mesma fórmula, quimicamente igual para todas as idades. Como isso faz sentido?
Não faz sentido. O que isso nos diz sobre como vemos o leite materno e como vemos a fórmula? Diz muito. Acreditamos que o leite materno é intrinsecamente perigoso enquanto, ao mesmo tempo, a fórmula é intrinsecamente segura. Não importa o quão diferente a fórmula seja do leite materno, nós, como sociedade e como organizações profissionais médicas, aceitamos, de alguma forma, que a fórmula é superior ao leite materno de uma mãe cujo bebê tem uma idade diferente do possível bebê receptor.
Claro, isso só pode ser devido ao nosso amor e aceitação cega da “ciência”, embora a “ciência” muitas vezes seja o marketing da empresa de fórmula, nada baseada em ciência. Veja o anúncio abaixo de uma fórmula, sem sentido, fazendo-o parecer científico. É um anúncio antigo, da década de 1990, quando a fórmula ainda não continha tantos dos ingredientes importantes que as fabricantes agora nos dizem, na verdade, nos avisam, que são necessários para o desenvolvimento adequado do bebê, mas aparentemente não eram necessários na década de 1990. E que agora fazem a fórmula quase exatamente como o leite materno (mesmo que a fórmula não mude).
Este anúncio de uma fórmula publicada na década de 1990 tenta nos convencer de que ela é baseada na ciência. As linhas do anúncio têm essa intenção, mas na verdade nada mais são do montes de palavras amontoadas. Sem significado.
Need help for breastfeeding? Make an appointment at the International Breastfeeding Centre.
Precisa de ajuda para amamentar? Marque uma consulta no Centro Internacional de Amamentação.
Copyright for the English original: Jack Newman, MD, FRCPC, Andrea Polokova, 2017, 2018, 2020
Copyright for the Portuguese translation: Jack Newman, MD, FRCPC, 2020
Translation to the Portuguese: Maria Luisa Silva Quintino (Brazil)